domingo, 29 de dezembro de 2019

Procissão (parte 2)

Faltavam dois dias para o início do verão  de acordo com o calendário, mas, as estações não representavam mais e nem obedeciam este registro temporal como outrora. As alterações climáticas provocadas pela ação do homem a cada novo período davam sinais que uma ação urgente, coletiva e drástica precisava acontecer, sob pena de reflexos irreversíveis para toda humanidade. A grande questão era que a divergência entre os grandes líderes mundiais sobre o que fazer, como fazer e onde emperrava qualquer iniciativa. O que importava no fim das contas eram  os interesses pontuais, a arrogância e o descompromisso com o futuro das próximas gerações. Essas alterações, somada ao assoreamento desiquilibrado do rio, é que causavam a cada ano o aparecimento desproporcional das  taboas que vinham e se acumulavam com o ciclo das marés. Naquele ano elas vieram com força e estreitavam ainda mais o leito do Maruí. Por isso a procissão das embarcações ainda seguia seu fluxo. Dona Dinda, apelido da Senhora Edite, era querida por todos da colônia de pescadores. Seu cuidado e a constante dedicação para com as crianças do lugar conquistaram o carinho e o respeito de toda comunidade. Ao longo de seus quase oitenta anos nunca se afastou da colônia e acompanhou o crescimento de cada um daqueles meninos e meninas, sempre que precisavam de socorro, lá estava ela, com a presteza de sempre e o amor incondicional. Certa vez o mão de ferro, que desde pequenino já demonstrava uma coragem incomum, percebeu que uma serpente, não tão grande, estava enroscada e sob as plantas do jardim de sua casa. Entendendo ser um perigo à sua família, o menino, então com oito anos apenas,  se apossou de uma vara de bambu e provocou a cobra no ímpeto de afasta-la do lugar. A serpente que que se mantinha imóvel em seu esconderijo ficou agitada. Ao  sentir o bambu tocar seu corpo ela se arrastou ligeiramente para se defender e seguiu em direção ao menino. Quando se deu conta do perigo, sua mãe, Nina, que ainda era viva, soltou um forte grito, o que assustou o menino. Ele soltou o bambu e tentou se afastar da cobra que num salto rasteiro conseguiu alcançar seu calcanhar. Nina gritou mais uma vez e pegando a vara do chão acertou um golpe certeiro na cabeça da serpente, foi o suficiente. Ao perceber que Tadeu tinha um ferimento no pé, sua mãe perdeu os sentidos, caiu e ficou desfalecida. Ao som do segundo grito de Nina, Dona Dinda e outros moradores correram até o jardim da casa. Enquanto uns foram tentar acudir a mãe do menino Dinda se dirigiu até ele e indagou sobre o que sucedeu.: _Me diz meu filho, o que houve? Mão de ferro, sentindo dor respondeu: _Aquela cobra Dinda, me pegou. Ela então avistou a serpente com a cabeça desfigurada. Olhando o calcanhar de Tadeu reparou o sangramento. Neste momento percebeu que sua mãe desmaiou ao ver o ocorrido. Com uma toalha embebida em alcool os vizinhos reanimaram Nina que logo arregalou os olhos e reclamou pelo filho: _Onde está meu filho, meu filho? Raimundo, seu vizinho, respondeu: _Calma, calma Nina, Dona Dinda o levou pra casa, vai lhe oferecer um remédio com suas ervas para previnir qualquer mal pela picada. Nina se acalmou, pois as plantas medicinais que a Dinda oferecia já eram de conhecimento. Seus efeitos positivos nunca deixaram dúvida. Após dois dias de uso e repouso o menino já estava inteiro. Certo que Dona Dinda reconheceu o menor risco para a vida de mão de ferro. A cobra não era, na verdade, venenosa, mas ainda assim afetou a integridade do menino. Este acontecimento, entre tantos outros, fizeram de Dona Dinda uma unanimidade, querida e respeitada por toda colônia. E foi justamente Tadeu, o mão de ferro, um dos primeiros a chegar no cais para esvaziar sua farta carga de peixes. Sua especialidade era a captura de robalos, um das melhores espécies daquela região. Ele parecia adivinhar a localização exata para jogar sua tarrafa e encontrar o cardume generoso de robalos. Outra aptidão afinada de Tadeu era a precisão e o manejo com o caranguejo, por isso o apelido de mão de ferro. Naquele extenso manguezal recuperado, os crustáceos reencontraram seu berçário natural. Outras espécies também recuperaram seu habitat, como a capivara, o jacaré, o cachorro do mato, entre outras, de existência duvidosa, pois apenas alguns pescadores assumiam ter avistado tais "bichos" naquelas tantas artérias fluviais que formavam aquela imensa área de conservação ambiental. Aliás, foi a partir de sua criação que a flora e a fauna local pode enfim se revigorar. Bia, sem conter sua emoção, entrou no barco já ancorado e abraçou seu amado longamente. Parecia uma verdadeira solenidade. Ela bem sabia o que representava aquele retorno são e salvo do seu grande amor. Quando Salomão foi tragado por aquela tempestade uma certeza até então impensável chegou em toda colônia, ninguém, ninguém mesmo poderia estar isento a uma tragédia depois daquele acontecimento que chocou a todos. Se o mais experiente entre todos não escapou da tormenta quem então poderia. O abraço de Bia em Bira, significava mais que mil beijos, o calor transmitido entre aqueles corpos chegava até a alma. Era o conforto que ele tanto esperava após a perda de seu pai, Salomão. Todo retorno Bia fazia questão de estar sempre ali, a postos, e recepcionar com tanto carinho seu amado. Bira, é claro, mais uma vez se emocionou com a recepção e aquele abraço o confortava sobremaneira. Mas no fundo um incômodo desta vez chegava junto naquele retorno. Além da falta de seu pai, nesta pescaria aconteceu algo que deixou Bira bem incomodado. Jeremias, o substituto de Salomão, estava no fim da procissão. Mas ainda estava fora do alcance dos olhos de Dona Dinda, que abençoava um a um que passava a sua frente. Jeremias trazia consigo as mesmas inquietações que desestabilizaram Bira. E certamente todos na colônia de pescadores também  ficarão. Brandão, atento pelo desembarque do Barbudo, já ficava inquieto. Numa das mãos, um copo com pinga até a borda, na outra um pedaço de filé de sardinha e debaixo do suvaco apertado ao corpo, o caderno todo sujo e rabiscado com suas anotações. Além do Barbudo, outros pescadores também constavam entre seus devedores. Por isso sua inquietação. Aquela já era a quinta dose de pinga que bebia. A procissão ainda não chegou ao fim...

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Procissão

PROCISSÃO O rio naquele fim de tarde de primavera parecia estar em festa com o deslizar suave das embarcações anunciando a volta de mais uma entre tantas viagens em busca do pão de cada dia para aqueles corajosos pescadores.  Pelo adiantado da hora e sob a angústia natural da espera, já aguardavam junto as margens do Maruí alguns amigos, parentes, curiosos, cobradores e comerciantes, todos saudando a passagem da procissão fluvial. Cada qual com sua expectativa. Era um retorno todo especial para um entre aqueles corajosos amantes do rio e do mar. Por isso a ansiosa recepção. Das margens se ouvia gritos de boas vindas, brincadeiras provocativas e um convite recorrente: _Chega logo pra cá mano, já vou pedir mais uma dose pra “bebemorar”. Assim gritou Orlando, o irmão de mão de ferro, apelido de Tadeu, por sua coragem, precisão e disposição na captura do caranguejo. Mão de ferro só não sabia, ainda, a surpresa que o aguardava. O convite não representava a corriqueira recepção de outras viagens, este era especial. Da outra margem, um comerciante da principal peixaria do local levanta sua voz: _Diz pra mim “cumpadi” barbudo, tá cheio aí o cesto? Barbudo é como chamavam João, desde sua promessa em manter a farta barba. Brandão, o peixeiro, queria mesmo era garantir o pagamento do empréstimo que fizera ao pescador antes de sua partida. E Barbudo, cabisbaixo, olhou fixo para o interior do barco e num esforço expressivo ergueu o polegar positivamente para seu credor. Um calor de arrepiar tomou o seu corpo, uma lista de compromissos surgia em seus pensamentos, entre elas a dívida com Brandão. A procissão rumo ao cais avança e um olhar atencioso se destaca entre todos. Os olhos de Bia procuravam cuidadosamente encontrar seu grande amor, mas em vão, ainda não o avistava na grande procissão. Sempre assim era a agonia de Bia pela volta dos pescadores, especialmente de seu namorado, Bira. Desde a grande tempestade que engoliu Saldanha, um dos mais experientes do grupo, mas que não resistiu aquela tormenta. Bia não tirava isso da cabeça, por isso o sofrimento. Junto a imensa tamarineira se ouviu um grande louvor que soou do início até quase a última embarcação. Foi Dona Dinda que soltou a voz: _Glória a Deus! Graças a Deus Pai estão de volta nossos meninos. E enviou, já dali mesmo, sua Bênção para todos e de forma toda especial para seu afilhado, Dinho. E todos que passavam a reverenciavam com a gratidão de afilhados. Era assim que Dona Dinda tratava todos os pescadores. Bia, enfim, abre um sorriso luminoso, seus olhos já conseguiam encontrar adiante seu querido, Bira. Assim era chamado Ubirajara. Mas este, tinha outros pensamentos e não havia avistado Bia. Orlando, antes que pedisse a bebida na venda foi repreendido por mão de ferro. _Mano, hoje não vai dar, tenho treino amanhã bem cedo, antes do nosso jogo, solteiro x casado, e não quero perder dessa vez. Todo fim de ano esse jogo era aguardado com grande entusiamo. Era a partida que colocava a prova os solteiros contra os casados, ou cansados, como eram chamados pelos mais jovens. Era uma sensação. E no jogo passado os solteiros perderam. Por isso a cautela do mão de ferro. Queria estar inteiro para a partida e devolver a derrota para os casados. Mas Tadeu ainda tinha uma surpresa e que poderia mudar seus planos. Barbudo que ainda não conseguia tirar a lista de credores da cabeça foi se aproximando do cais e uma certeza o tomou por inteiro, que não poderia deixar de contribuir com sua congregação, mesmo que pra isso sacrificasse algum compromissos. Nesta intenção fez uma estimativa do que lhe renderia a pescaria frente ao que precisava pagar. Dinho, que tinha por sua madrinha verdadeira adoração, aliviou seu coração ao vê-la tão bem. Antes de sair pra pescaria percebeu que não estava bem de saúde. Estava na verdade com um aperto no peito ao saber que mais uma pescaria se aproximava. E que seu Dinho também iria. Ele ficou aliviado, esta noite teria samba na quadra e como sua madrinha estava bem ele iria, com certeza, pra brincar com seu repique e sacudir a poeira da quadra da escola de samba. Depois do gosto por pescar, Dinho guardava outros dois grandes prazeres, trazer alegria pra todos da comunidade do samba com sua percussão e acompanhar, sempre que possível, a missa na Matriz. E naquele domingo teria, e Dinho, se programou para participar. Bira, que já se aproximava do desembarque, retomou sua atenção para o presente e não conseguia tirar os olhos do seu amor, Bia. Não importava o tempo, uma noite, três dias, uma semana. Qualquer segundo longe um do outro representava uma eternidade. Pela margem ela caminhava em direção ao cais e quanto mais se aproximava ambos se olhavam fixamente e só pensavam em se abraçar e se abraçar. Era tanta saudade. O Maruí estava repleto de taboas, por isso a demora no desembarque. Mas a procissão ainda não terminou...