quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Procissão parte 5

O silêncio da noite foi interrompido pelo apito estridente da locomotiva. Imponente com seus cinco vagões, a composição se aproximava e dominava o cenário da curva antes da estação. Pontualmente as dezenove horas o interestadual estava chegando. Alguns desavisados que ainda estavam pelo cais finalizando suas compras se apressaram para não perder a viagem. Era o trem que encerrava todos os dias os serviços da ferrovia federal. O próximo, só na madrugada, que retorna de Vitória. Na estação, passageiros e bagagens aguardavam ansiosos para embarcar. Um vagão específico para cargas estava lotado de mantimentos que seria entregue aos comerciantes da região  sob a coordenação do chefe da estação. A família de Seu Portuga também estava entre os passageiros para a longa viagem e prepararam alguns petiscos e refrescos. Os meninos, Italiano, Inglês e Alemão estavam juntos do pai e Barcelona e Viena com a mãe, Dona Maria. Estavam indo a Vitória passar uns dias na casa dos avós paternos. A plataforma, lotada, estremeceu com a força do trovão que pegou todos de surpresa. A lua desapareceu sem que ninguém percebesse, exceto Dona Dinda e Seu Mané, em minutos o vento aproximou rapidamente a tempestade. A expectativa pela chegada do Interestadual e os últimos comerciantes ainda negociando no cais desviou a atenção de todos. Algumas das  lâmpadas da decoração de Natal da estação ferroviária de Itambé explodiram com a intensidade do raio, o que assustou a todos. Linda estava a decoração naquele ano. Colaboradores e o chefe da estação capricharam na iluminação e nos detalhes. A cada ano uma novo formato, sempre diferente, e neste ano, emolduraram toda extensão da estação, de cima abaixo e na extremidade se destacava uma linda estrela. Outro forte relâmpago atingiu um dos últimos eucaliptos às margens da ferrovia e este tombou sobre os trilhos um pouco a frente da estação. O maquinista ficou sem voz, em choque, o susto o imobilizou. O trem não poderia seguir viagem com a via férrea interditada pelo eucalipto e isto ainda mais deixou o condutor atordoado. Justamente naquela viagem não poderia chegar atrasado. Os passageiros, percebendo a demora na partida da composição saíam e questionavam o chefe da estação. O vento, subitamente, atingiu uma velocidade tal que árvores dançavam e seu galhos mais frágeis eram arremessados. A tamarineira, imensa e cinquentenária, bailava ao som da forte ventania o que chamou a atenção de Jorjão que observava de uma das barracas o início da tempestade. Ele ficou preocupado com a árvore e comentou: _ Segura firme nossa velha querida tamarineira. Ele, estava lembrando que na próxima semana um novo projeto iria começar ali. Jorjão era o mestre de bateria da escola de samba e junto com Seu Mané conversava com os meninos sobre o projeto, mas a tempestade desviou a atenção. Percebendo a aproximação do temporal Barbudo adiantou sua negociação com Brandão e repassou parte de sua pescaria. Assim ficou aliviado, conseguiu parcelar seu débito e separou parte para o dízimo, quitar com o agiota e o restante para outros compromissos. Porém, não poderia atrasar o próximo pagamento do peixeiro. Bira e Jeremias conversavam sobre o ocorrido no rio, quando estourou o terceiro trovão. A descarga foi tão intensa que a energia de imediato faltou. A escuridão cobriu toda região. Dona Dinda que estava acompanhando a reunião dos sobrinhos em sua casa desde que percebeu a mudança do tempo pediu a eles: _ Crianças é hora de parar a conversa, depois ou amanhã vocês continuam. Dora, Dinha, Duda e Dudu, estavam finalizando o rascunho do projeto que se chamava provisoriamente de Nossa História. Desde que eles conseguiram estabilidade, após muita luta e persistência, discutiam sobre o desafio de desenvolver um trabalho na colônia. Faltava pouco. _ O que você quer me falar? Perguntou Mão de ferro a seu irmão. Enquanto descarragava seus peixes Tadeu foi avisado por Orlando sobre uma notícia importante e segurava na mão um envelope. Ainda na barraca seu irmão respondeu: _ Irmão, tenho uma carta pra você, chegou hoje, é de sua noiva, Bete. Elisabete estava em São Pedro do Norte a três mêses e estavam noivos a dois anos. Mas, com a escuridão não poderia ler o texto. Na estação,  passageiros, o comissário  e o chefe da estação começavam os procedimentos de emergência.  A retirada do eucalipto da via iria demandar tempo. Neste instante a ventania surpreendeu a todos. Telhados, galhos de árvores, tampas de caixas d'água e outros objetos voavam sem direção. A estação serviu de abrigo para quem iria embarcar e os passageiros retornaram ao trem. A chuva caiu com força, o vento continuou e os raios se multiplicaram. A colônia entrou em pânico e a lembrança da tormenta que levou Saldanha voltou, principalmente para Bia e Bira. Bia que tambem estava junto na casa de Dona dinda perguntou aflita: _ Minha Dinda onde está Bira? Ele já havia comentado que iria tratar um assunto sério com Jeremias, mas a confusão a fez esquecer. Dona Dinda rezpondeu: _ Filha ele disse que precisava falar com Jeremias e voltaria logo por causa do tempo. Bia então se acalmou. Telhas de zinco, roupas, panelas, brinquedos e tantos outros objetos voavam sem direção. Os gritos de alerta para que as crianças procurassen abrigo se ouvia de todos lados. Foi um alvoroço e seu Mané já articulava o que fazer com os vizinhos mais afetados. Seu José quando saía do cais para se proteger junto com todos que terminavam de reunir e guardar seus pertences percebeu ao longe a luz de uma lanterna se aproximando. Observou de novo e concluiu que era a embarcação dos irmãos Corda e Caçamba, lotada de sacos de caranguejos. José ficou sem entender a chegada aquela hora. Eles avisaram que só retornariam no dia seguinte.  Os irmãos gêmeos, de fato, pensavam em ficar mais um dia, mas ao perceber a chegada da tempestade mudaram os planos, o que rendeu horas de debate, pra variar. O Corda não queria voltar e Caçamba alertava para o perigo da mudança brusca do tempo, o que acabou prevalecendo. Se apressaram para ancorar e se proteger. Quando a energia no buteco do zizinho faltou o jogo de bilhar entre Perninha e Valério estava para ser definido, e o pior, estava valendo o valor de um botijão de gás. Perninha  perdeu todo dinheiro que tinha e apostava agora seu botijão de gás. E agora. No interior do boteco, os curiosos e apostadores, estavam alheios ao que se passava do lado de fora. A tensão era tanta que o mundo se reduziu ao drama de Perninha, como era chamado Jessé. Ele já havia perdido no bilhar quase toda sua pensão e agora apostava seu único botijão de gás. Valério alertou: _ Ninguém mexe em nada, deixa como tá, logo volta a energia. Essa partida tá no papo, já pode trazer o botijão. Perninha ainda não sabia, mas um dos barracos destelhados foi o seu. Perto da quadra da escola de samba se ouviu o forte barulho das telhas de parte do galpão se desprendendo, voando e caindo sobre casas e pela rua. Justamente do lado mais novo, onde ficava as oficinas de artesanato, corte e costura e música. Os materiais armazenados, alguns que já estavam prontos e instrumentos ficaram a céu aberto. Ao saber disso, Dona Sinhá não se conteve. Seu choro ecoou longe. Dinho levantou o olhar e perguntou a Dona Dinda: _ Madrinha, será que vai ter o samba hoje? A procissão chegou e junto a forte tormenta...

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