segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Procissão parte 4

A lua, aquela altura, surgia no céu. O colorido das embarcações refletia com o balanço da maré. E as garças, algumas, ainda disputavam os poucos peixes mortos que ficaram espalhados pelo cais. Após a chegada de todos da pescaria era sempre assim. As vozes dos que aguardavam pelas margens indagando sobre as novidades, surpresas e perigos daquela viagem que se misturavam ao gazear das garças rondando e disputando cada partícula de peixe e ainda o grasnar de poucas gaivotas. Junto a isso, era possível ouvir das barracas o tilintar das garrafas e copos, o vai e vem dos moradores e visitantes que negociavam nas bancas dos peixeiros a compra de cada espécie. Até fechar o negócio uma verdadeira ladainha acontecia. Todos os sons se misturavam e formavam uma verdadeira sinfonia. Uma celebração de verdade era a chegada de cada procissão dos barcos. Alegria, fartura, bem viver, tudo era festa. Sem contar a criançada debaixo da imensa tamarineira. Ao som do batuque improvisado em latas d'água, panelas velhas, latas com pedrinhas e baldes plásticos. Ficavam ali brincando de sambistas, ensaiando para um dia, quem sabe, assumir o batuque na quadra. Avistando aquela cena, Dona Dinda, balançava suavemente o quadril, recordando seus tempos de Porta Bandeira da Escola de Samba, e cochichou com Dona Ziza, sua irmã que agora já não lavava nem passava: _ Nossas crianças, olha minha irmã, mais uma geração que agente acompanha, Deus seja louvado! _ Mas todos continuam sendo nossas crianças, até os casados, com toda dificuldade, mas com muitas bênçãos. Respondeu Dona Ziza. Perto dos meninos estava Seu Mané, um dos moradores mais respeitados da colônia, já aposentado pelo programa especial do governo, mas que ainda orientava e participava das reuniões da associação, tendo voz decisiva em muitas ocasiões. Olhando os meninos, fez um aceno e de imediato eles abandonaram seus "instrumentos" e foram sentar junto d'ele. Iria começar mais uma de suas aulas. Todos ficavam atentos às palavras do Mané. Assim viviam todos da colônia, alegres, esperançosos, apesar da falta d'água, do saneamento, de toda sorte de dificuldades e abandono do poder público. Eram felizes, do seu jeito. Barbudo, depois que descarregou seus peixes e pesou ficou ainda mais tenso. Logo alí o aguardava Brandão que já segurava mais uma dose de pinga. Outros pescadores já haviam negociado com ele parte de suas cargas, como o Pé grande, apelido de Sebastião. Solteiro, morava sozinho e sempre negociava parte do pescado e o que sobrava distribuía entre sua família, irmãos e tios. O que ele tava querendo mesmo é que chegasse logo a hora do samba na quadra. Tava louco pra bricar com seu cavaco. Ele levava uma vida tranquila, simples e comedida. Pescava não por necessidade, mas por gosto, por prazer e se realizava dedilhando seu cavaco, aí se entregava de corpo e alma. Dinho, seu amigo, eram parceiros no grupo que tocava na quadra. Em breve estariam juntos no samba. Barbudo se aproximou de Brandão e iniciou a conversa pra resolver sua divida: _Patrão, como agente pode ver essa dívida? O Patrão respondeu: _Tadeu, e só me acertar e fica tudo no zero. _ Barbudo coçou a farta barba e continuou: _ Meu patrão, me diz aí como ficou, tem outras coisas e não me lembro mais. _ Você não anotou, respondeu Brandão. _ É que tenho outras dívidas também, completou o pescador. Uma das pendências que mais o atormentava era com o agiota, Seu Cabeça, como era conhecido Júlio. A fama de cabeça corria a região. Como que conseguiu se tornar um bem sucedido comerciante? Era uma interrogação recorrente nas rodas de conversa. E certamente era o mais rico. Outra questão que também era bem comentada se tratava de seu comportamento com os credores. Ninguém ousava, nem em pensamento, ficar com divida em aberto e sem que uma boa e convincente justificativa fosse apresentada. Histórias tenebrosas eram contadas sobre alguns clientes que não honraram seus compromissos com o cabeça. Histórias que poucos gostavam de lembrar. Por isso a inquietação do Barbudo. Não poderia vacilar. Dinho, depois de abraçar mãe e madrinha, beija-las e pedir suas bênçãos se aproximou do pé grande e combinou: _ Amigo bom, que horas marcamos pra ir na quadra? _ Pode ser pelas nove e meia, o samba começa as dez, respondeu Sebastião, que continuou, olha, hoje não deixa agente na mão heim. Sexta passada aquela gringa te tirou do samba e ficamos até o fim sem você. Hoje não vai dar, se ela aparecer, dá seu jeito. A gringa foi uma loura alta, de olhos claros, muito bem vestida que veio com um grupo de Itaocara, uma cidade vizinha. O Samba da região era bem falado, elogiado por todos. E sempre vinha gente nova. Essa gringa foi uma. Embora sua presença despertasse a curiosidade e olhares de muitos homens na quadra, foi com o pé grande que ela decidiu dedicar toda sua atenção, a ponto de retirá-lo do samba. Dinho não ficava confortável quando alguém do grupo faltava ou saía antes do fim do samba. Eles já sabiam o que cada um pensava, havia uma sincronia. Quando outro ritmista assumia o lugar de alguém do grupo, Dinho ficava preocupado. E esta noite a quadra estaria cheia, era dia de apresentação de novos sambas. Por isso o pedido para que pé grande permanecesse até o fim. Logo, o samba iria começar e amanhã, o esperado jogo, solteiros x casados. No cais cada um cuidava do seu destino e o silêncio da maré já dominava o início da noite. Até segunda.....

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