segunda-feira, 8 de março de 2021

Às Mulheres

"Mandou, pois, o Senhor Deus um profundo sono a Adão, e, enquanto ele estava dormindo, tirou uma das suas costelas, e pôs carne no lugar dela. E da costela, que tinha tirado de Adão, formou o Senhor Deus uma mulher; e a levou a Adão.  E Adão disse: Eis aqui agora o osso dos meus ossos e a carne da mimha carne; ela se chamou Virago, por que do varão foi tomada. Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe, e se unirá a sua mulher; e serão dois numa só carne." (Genesis, 2, 21-24). Este relato da criação, por si só, bastaria para homenagear as mulheres, por ocasião do dia dedicado a elas. A Sagrada Escritura, iluminada pelo Espírito Santo na construção de cada livro, de cada frase, de cada palavra, e que com tão singela mensagem, coloca a mulher em sua plena dimensão, importância e representação para Deus Pai, o Criador. Por isso,  poderíamos parar por aqui. A criação da mulher foi o detalhe, o ponto que deu início para que o milagre da vida continuasse em seu complexo e particular mistério. O milagre da vida, único, perfeito e maravilhoso, e tendo a mulher como papel determinante e fundamental aos olhos de Deus Pai. Mas precisamos ir além, e com humildade vamos continuar. Seguindo e arriscando contribuir ainda mais com a justa homenagem à Elas, começamos pedindo perdão. Sim, perdão. Perdão por nossa tentativa histórica de insistir em negar e diminuir sua devida representação pra todos nós, homens. Nós, por toda parte desta terra, continuamos a não compreender a plenitude de sua essência. E sendo assim, reagimos surpeendentemente expressando esta incompreensão. Ora tratando como objeto, ora com obsessão possessiva. E Tendo em seu mais grave delírio, entre tantas manifestações, atentar contra sua vida. Esquecendo de vez que ela é carne de sua carne. Perdão à todas elas. Mas é preciso também, ter humildade pra afirmar que é vã toda tentativa através da força, da violência e da negação a seu respeito. A mulher está e continuará acima de tudo isto. É inacreditável a sua força, a sua resistência e sua paixão pela vida. Nada e ninguém impedirá que sua essência continue a perfumar por toda terra, ninguém. Parabéns e muita vida, sempre. Muita vida pra todas as mulheres.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Procissão parte 5

O silêncio da noite foi interrompido pelo apito estridente da locomotiva. Imponente com seus cinco vagões, a composição se aproximava e dominava o cenário da curva antes da estação. Pontualmente as dezenove horas o interestadual estava chegando. Alguns desavisados que ainda estavam pelo cais finalizando suas compras se apressaram para não perder a viagem. Era o trem que encerrava todos os dias os serviços da ferrovia federal. O próximo, só na madrugada, que retorna de Vitória. Na estação, passageiros e bagagens aguardavam ansiosos para embarcar. Um vagão específico para cargas estava lotado de mantimentos que seria entregue aos comerciantes da região  sob a coordenação do chefe da estação. A família de Seu Portuga também estava entre os passageiros para a longa viagem e prepararam alguns petiscos e refrescos. Os meninos, Italiano, Inglês e Alemão estavam juntos do pai e Barcelona e Viena com a mãe, Dona Maria. Estavam indo a Vitória passar uns dias na casa dos avós paternos. A plataforma, lotada, estremeceu com a força do trovão que pegou todos de surpresa. A lua desapareceu sem que ninguém percebesse, exceto Dona Dinda e Seu Mané, em minutos o vento aproximou rapidamente a tempestade. A expectativa pela chegada do Interestadual e os últimos comerciantes ainda negociando no cais desviou a atenção de todos. Algumas das  lâmpadas da decoração de Natal da estação ferroviária de Itambé explodiram com a intensidade do raio, o que assustou a todos. Linda estava a decoração naquele ano. Colaboradores e o chefe da estação capricharam na iluminação e nos detalhes. A cada ano uma novo formato, sempre diferente, e neste ano, emolduraram toda extensão da estação, de cima abaixo e na extremidade se destacava uma linda estrela. Outro forte relâmpago atingiu um dos últimos eucaliptos às margens da ferrovia e este tombou sobre os trilhos um pouco a frente da estação. O maquinista ficou sem voz, em choque, o susto o imobilizou. O trem não poderia seguir viagem com a via férrea interditada pelo eucalipto e isto ainda mais deixou o condutor atordoado. Justamente naquela viagem não poderia chegar atrasado. Os passageiros, percebendo a demora na partida da composição saíam e questionavam o chefe da estação. O vento, subitamente, atingiu uma velocidade tal que árvores dançavam e seu galhos mais frágeis eram arremessados. A tamarineira, imensa e cinquentenária, bailava ao som da forte ventania o que chamou a atenção de Jorjão que observava de uma das barracas o início da tempestade. Ele ficou preocupado com a árvore e comentou: _ Segura firme nossa velha querida tamarineira. Ele, estava lembrando que na próxima semana um novo projeto iria começar ali. Jorjão era o mestre de bateria da escola de samba e junto com Seu Mané conversava com os meninos sobre o projeto, mas a tempestade desviou a atenção. Percebendo a aproximação do temporal Barbudo adiantou sua negociação com Brandão e repassou parte de sua pescaria. Assim ficou aliviado, conseguiu parcelar seu débito e separou parte para o dízimo, quitar com o agiota e o restante para outros compromissos. Porém, não poderia atrasar o próximo pagamento do peixeiro. Bira e Jeremias conversavam sobre o ocorrido no rio, quando estourou o terceiro trovão. A descarga foi tão intensa que a energia de imediato faltou. A escuridão cobriu toda região. Dona Dinda que estava acompanhando a reunião dos sobrinhos em sua casa desde que percebeu a mudança do tempo pediu a eles: _ Crianças é hora de parar a conversa, depois ou amanhã vocês continuam. Dora, Dinha, Duda e Dudu, estavam finalizando o rascunho do projeto que se chamava provisoriamente de Nossa História. Desde que eles conseguiram estabilidade, após muita luta e persistência, discutiam sobre o desafio de desenvolver um trabalho na colônia. Faltava pouco. _ O que você quer me falar? Perguntou Mão de ferro a seu irmão. Enquanto descarragava seus peixes Tadeu foi avisado por Orlando sobre uma notícia importante e segurava na mão um envelope. Ainda na barraca seu irmão respondeu: _ Irmão, tenho uma carta pra você, chegou hoje, é de sua noiva, Bete. Elisabete estava em São Pedro do Norte a três mêses e estavam noivos a dois anos. Mas, com a escuridão não poderia ler o texto. Na estação,  passageiros, o comissário  e o chefe da estação começavam os procedimentos de emergência.  A retirada do eucalipto da via iria demandar tempo. Neste instante a ventania surpreendeu a todos. Telhados, galhos de árvores, tampas de caixas d'água e outros objetos voavam sem direção. A estação serviu de abrigo para quem iria embarcar e os passageiros retornaram ao trem. A chuva caiu com força, o vento continuou e os raios se multiplicaram. A colônia entrou em pânico e a lembrança da tormenta que levou Saldanha voltou, principalmente para Bia e Bira. Bia que tambem estava junto na casa de Dona dinda perguntou aflita: _ Minha Dinda onde está Bira? Ele já havia comentado que iria tratar um assunto sério com Jeremias, mas a confusão a fez esquecer. Dona Dinda rezpondeu: _ Filha ele disse que precisava falar com Jeremias e voltaria logo por causa do tempo. Bia então se acalmou. Telhas de zinco, roupas, panelas, brinquedos e tantos outros objetos voavam sem direção. Os gritos de alerta para que as crianças procurassen abrigo se ouvia de todos lados. Foi um alvoroço e seu Mané já articulava o que fazer com os vizinhos mais afetados. Seu José quando saía do cais para se proteger junto com todos que terminavam de reunir e guardar seus pertences percebeu ao longe a luz de uma lanterna se aproximando. Observou de novo e concluiu que era a embarcação dos irmãos Corda e Caçamba, lotada de sacos de caranguejos. José ficou sem entender a chegada aquela hora. Eles avisaram que só retornariam no dia seguinte.  Os irmãos gêmeos, de fato, pensavam em ficar mais um dia, mas ao perceber a chegada da tempestade mudaram os planos, o que rendeu horas de debate, pra variar. O Corda não queria voltar e Caçamba alertava para o perigo da mudança brusca do tempo, o que acabou prevalecendo. Se apressaram para ancorar e se proteger. Quando a energia no buteco do zizinho faltou o jogo de bilhar entre Perninha e Valério estava para ser definido, e o pior, estava valendo o valor de um botijão de gás. Perninha  perdeu todo dinheiro que tinha e apostava agora seu botijão de gás. E agora. No interior do boteco, os curiosos e apostadores, estavam alheios ao que se passava do lado de fora. A tensão era tanta que o mundo se reduziu ao drama de Perninha, como era chamado Jessé. Ele já havia perdido no bilhar quase toda sua pensão e agora apostava seu único botijão de gás. Valério alertou: _ Ninguém mexe em nada, deixa como tá, logo volta a energia. Essa partida tá no papo, já pode trazer o botijão. Perninha ainda não sabia, mas um dos barracos destelhados foi o seu. Perto da quadra da escola de samba se ouviu o forte barulho das telhas de parte do galpão se desprendendo, voando e caindo sobre casas e pela rua. Justamente do lado mais novo, onde ficava as oficinas de artesanato, corte e costura e música. Os materiais armazenados, alguns que já estavam prontos e instrumentos ficaram a céu aberto. Ao saber disso, Dona Sinhá não se conteve. Seu choro ecoou longe. Dinho levantou o olhar e perguntou a Dona Dinda: _ Madrinha, será que vai ter o samba hoje? A procissão chegou e junto a forte tormenta...

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Procissão parte 4

A lua, aquela altura, surgia no céu. O colorido das embarcações refletia com o balanço da maré. E as garças, algumas, ainda disputavam os poucos peixes mortos que ficaram espalhados pelo cais. Após a chegada de todos da pescaria era sempre assim. As vozes dos que aguardavam pelas margens indagando sobre as novidades, surpresas e perigos daquela viagem que se misturavam ao gazear das garças rondando e disputando cada partícula de peixe e ainda o grasnar de poucas gaivotas. Junto a isso, era possível ouvir das barracas o tilintar das garrafas e copos, o vai e vem dos moradores e visitantes que negociavam nas bancas dos peixeiros a compra de cada espécie. Até fechar o negócio uma verdadeira ladainha acontecia. Todos os sons se misturavam e formavam uma verdadeira sinfonia. Uma celebração de verdade era a chegada de cada procissão dos barcos. Alegria, fartura, bem viver, tudo era festa. Sem contar a criançada debaixo da imensa tamarineira. Ao som do batuque improvisado em latas d'água, panelas velhas, latas com pedrinhas e baldes plásticos. Ficavam ali brincando de sambistas, ensaiando para um dia, quem sabe, assumir o batuque na quadra. Avistando aquela cena, Dona Dinda, balançava suavemente o quadril, recordando seus tempos de Porta Bandeira da Escola de Samba, e cochichou com Dona Ziza, sua irmã que agora já não lavava nem passava: _ Nossas crianças, olha minha irmã, mais uma geração que agente acompanha, Deus seja louvado! _ Mas todos continuam sendo nossas crianças, até os casados, com toda dificuldade, mas com muitas bênçãos. Respondeu Dona Ziza. Perto dos meninos estava Seu Mané, um dos moradores mais respeitados da colônia, já aposentado pelo programa especial do governo, mas que ainda orientava e participava das reuniões da associação, tendo voz decisiva em muitas ocasiões. Olhando os meninos, fez um aceno e de imediato eles abandonaram seus "instrumentos" e foram sentar junto d'ele. Iria começar mais uma de suas aulas. Todos ficavam atentos às palavras do Mané. Assim viviam todos da colônia, alegres, esperançosos, apesar da falta d'água, do saneamento, de toda sorte de dificuldades e abandono do poder público. Eram felizes, do seu jeito. Barbudo, depois que descarregou seus peixes e pesou ficou ainda mais tenso. Logo alí o aguardava Brandão que já segurava mais uma dose de pinga. Outros pescadores já haviam negociado com ele parte de suas cargas, como o Pé grande, apelido de Sebastião. Solteiro, morava sozinho e sempre negociava parte do pescado e o que sobrava distribuía entre sua família, irmãos e tios. O que ele tava querendo mesmo é que chegasse logo a hora do samba na quadra. Tava louco pra bricar com seu cavaco. Ele levava uma vida tranquila, simples e comedida. Pescava não por necessidade, mas por gosto, por prazer e se realizava dedilhando seu cavaco, aí se entregava de corpo e alma. Dinho, seu amigo, eram parceiros no grupo que tocava na quadra. Em breve estariam juntos no samba. Barbudo se aproximou de Brandão e iniciou a conversa pra resolver sua divida: _Patrão, como agente pode ver essa dívida? O Patrão respondeu: _Tadeu, e só me acertar e fica tudo no zero. _ Barbudo coçou a farta barba e continuou: _ Meu patrão, me diz aí como ficou, tem outras coisas e não me lembro mais. _ Você não anotou, respondeu Brandão. _ É que tenho outras dívidas também, completou o pescador. Uma das pendências que mais o atormentava era com o agiota, Seu Cabeça, como era conhecido Júlio. A fama de cabeça corria a região. Como que conseguiu se tornar um bem sucedido comerciante? Era uma interrogação recorrente nas rodas de conversa. E certamente era o mais rico. Outra questão que também era bem comentada se tratava de seu comportamento com os credores. Ninguém ousava, nem em pensamento, ficar com divida em aberto e sem que uma boa e convincente justificativa fosse apresentada. Histórias tenebrosas eram contadas sobre alguns clientes que não honraram seus compromissos com o cabeça. Histórias que poucos gostavam de lembrar. Por isso a inquietação do Barbudo. Não poderia vacilar. Dinho, depois de abraçar mãe e madrinha, beija-las e pedir suas bênçãos se aproximou do pé grande e combinou: _ Amigo bom, que horas marcamos pra ir na quadra? _ Pode ser pelas nove e meia, o samba começa as dez, respondeu Sebastião, que continuou, olha, hoje não deixa agente na mão heim. Sexta passada aquela gringa te tirou do samba e ficamos até o fim sem você. Hoje não vai dar, se ela aparecer, dá seu jeito. A gringa foi uma loura alta, de olhos claros, muito bem vestida que veio com um grupo de Itaocara, uma cidade vizinha. O Samba da região era bem falado, elogiado por todos. E sempre vinha gente nova. Essa gringa foi uma. Embora sua presença despertasse a curiosidade e olhares de muitos homens na quadra, foi com o pé grande que ela decidiu dedicar toda sua atenção, a ponto de retirá-lo do samba. Dinho não ficava confortável quando alguém do grupo faltava ou saía antes do fim do samba. Eles já sabiam o que cada um pensava, havia uma sincronia. Quando outro ritmista assumia o lugar de alguém do grupo, Dinho ficava preocupado. E esta noite a quadra estaria cheia, era dia de apresentação de novos sambas. Por isso o pedido para que pé grande permanecesse até o fim. Logo, o samba iria começar e amanhã, o esperado jogo, solteiros x casados. No cais cada um cuidava do seu destino e o silêncio da maré já dominava o início da noite. Até segunda.....

sábado, 4 de janeiro de 2020

Procissão (parte3)

rocissão  (Parte 3) Do céu, todos avistaram, ao longe, um extenso e cortante raio que ligou com suas retas geométricas a terra e o céu. O som do trovão foi silencioso, mas se aproximava cada vez mais a tempestade. Como todas as embarcações retornaram na procissão, toda colônia estava tranquila. Bem diferente da ocasião em que, Salomão, o pescador mais experiente do grupo foi levado por aquela intensa e inesquecível tempestade. Todos, protegidos cada um a sua maneira, aguardavam que seu barco, como em todas as viagens, retornasse junto com os demais. Esperavam um milagre, o que não ocorreu. Naquele dia o Netuno, o barco do Salomão, afundou e pereceu. Além dele dois ajudantes também não retornaram e jamais foram encontrados. O que traumatizou ainda mais a todos.. Aquela tempestade, incomum, foi mais um indício das alterações climáticas. Os estragos causados foram imensuráveis. Parecia algo sobrenatural a velocidade e a fúria daquela ventania. O volume pluviométrico da chuva superou todos os registros anteriores e mais, a duração da tormenta também surpreendeu. Aquele dia ninguém na colônia esquece. E por isso a cada anúncio de tempestade a preocupação só aumentava. Bira, ao sentir o aconchego daquele abraço tão apertado de Bia por um instante esqueceu sua preocupação. Todo aquele corpo que parecia esconder o seu servia como um acalento. Ela, um pouco mais alta e mais forte que ele, mulherão e muito bonita, era o que diziam os homens que a conheciam, o que sempre servia de comentários especulativos e provocativos. Bia que quase nunca deixava de usar seus turbantes coloridos nesta tarde exibia seu longobcabelo negro e encaracolado. Brandão, como em outras ocasiões provocou de novo: _O que foi que esse mulherão viu nesse magrelo? É muita areia pra essa carroça, kkkk! Barbudo, de imediato respobdeu: _ Para com isso, ela viu nele o que não encontrou em ninguém, é difícil entender isso? Deixa os dois em paz. Ubirajara, durante aquele abraço, voltou a lembrar o dia em que teve a certeza de que aquela era a mulher da sua vida. Ambos estudavam no mesmo ginásio e na mesma classe e começaram a trocar os primeiros beijos e carícias sempre que possível. Certa vez, conseguiram se desvencilhar do grupo de colegas e foram conversar nos fundos do Colégio onde não havia curiosos, apenas árvores  e um jardim. No meio do diálogo, ele, tomou coragem e desabotoou bem devagar sua blusa. Ao terminar, ficou por segundos observando seu lindo colo e..., olhou pra ela e perguntou: _Eu posso? Ela logo respondeu: _É todo seu, você pode tudo. Bira, hipnotizado e sem saber o que fazer, voltou a fechar um a um os botões  e em seguida a beijou longamente. Bia, então com doze anos, dois a menos que Bira, surpreendeu com sua firmeza e maturidade. A partir deste momento dicidiu que aquela era a mulher da sua vida. Dona Dinda, agradeceu pelo retorno de todos, enfim, passava a sua frente a última embarcação da procissão, era Jeremias que também agradecia a bênção recebida da madrinha. Ele conduzia o Netuno filho, uma homenagem à Salomão, seu irmão. Seu José, que vigiava quase todos os barcos, perguntou a cada um dos pescadores que desembarcava se na segunda feira voltaria na próxima procissão, e todos responderam que sim,exceto Dinho e Tadeu . Por vezes, alguns preferiam não embarcar na segunda e era necessário organizar a saída dos barcos. Tadeu, estava muito contente pela pescaria farta de robalos e avaliou que na segunda não precisava acompanhar a próxima procissão. Os cestos e os reservatórios também guardavam outras espécies de peixes, o que totalizou quase setenta quilos. Agora, ele só pensava no treino amanhã pela manhã, para o jogo decisivo, domingo. A revanche solteiros x casados.  As torcidas de cada lado já estavam preparadas. Faixas, fogos de artifício, bandeiras e coreógrafia.  Todo fim de ano uma surpresa era apresentada pelas torcidas organizadas. E neste ano não seria diferente. Dona Dinda estava muito feliz ao abraçar seu afilhado querido. Tinha um carinho todo especial por Dinho. Ele, o caçula de sete irmãos, cinco meninas e dois meninos. Entre todos, o único a não continuar os estudos. Seus irmãos, mesmo formados, não deixavam de se especializar, cada um na sua área. Ao menos uma vez por ano, participavam de eventos regionais, nacionais ou internacional.  E tudo começou com a abnegada dedicação de sua mãe, Dona Ziza, irmã de sua madrinha, que lavava e passava roupa para seis famílias a fim de complementar a renda do marido e ajudar as irmãs mais velhas, Dora e Dinha, as primeiras que concluíram o ensino superior. Dinho, por sua vez, decidiu seguir os passos do pai pescador. João, o barbudo, cabisbaixo e pensativo, se preparava para a negociação com o dono da peixaria. Precisava negociar da melhor forma possível sua divida, pois outros compromissos o inquietavam. Na segunda feira, outra procissão de ida...

domingo, 29 de dezembro de 2019

Procissão (parte 2)

Faltavam dois dias para o início do verão  de acordo com o calendário, mas, as estações não representavam mais e nem obedeciam este registro temporal como outrora. As alterações climáticas provocadas pela ação do homem a cada novo período davam sinais que uma ação urgente, coletiva e drástica precisava acontecer, sob pena de reflexos irreversíveis para toda humanidade. A grande questão era que a divergência entre os grandes líderes mundiais sobre o que fazer, como fazer e onde emperrava qualquer iniciativa. O que importava no fim das contas eram  os interesses pontuais, a arrogância e o descompromisso com o futuro das próximas gerações. Essas alterações, somada ao assoreamento desiquilibrado do rio, é que causavam a cada ano o aparecimento desproporcional das  taboas que vinham e se acumulavam com o ciclo das marés. Naquele ano elas vieram com força e estreitavam ainda mais o leito do Maruí. Por isso a procissão das embarcações ainda seguia seu fluxo. Dona Dinda, apelido da Senhora Edite, era querida por todos da colônia de pescadores. Seu cuidado e a constante dedicação para com as crianças do lugar conquistaram o carinho e o respeito de toda comunidade. Ao longo de seus quase oitenta anos nunca se afastou da colônia e acompanhou o crescimento de cada um daqueles meninos e meninas, sempre que precisavam de socorro, lá estava ela, com a presteza de sempre e o amor incondicional. Certa vez o mão de ferro, que desde pequenino já demonstrava uma coragem incomum, percebeu que uma serpente, não tão grande, estava enroscada e sob as plantas do jardim de sua casa. Entendendo ser um perigo à sua família, o menino, então com oito anos apenas,  se apossou de uma vara de bambu e provocou a cobra no ímpeto de afasta-la do lugar. A serpente que que se mantinha imóvel em seu esconderijo ficou agitada. Ao  sentir o bambu tocar seu corpo ela se arrastou ligeiramente para se defender e seguiu em direção ao menino. Quando se deu conta do perigo, sua mãe, Nina, que ainda era viva, soltou um forte grito, o que assustou o menino. Ele soltou o bambu e tentou se afastar da cobra que num salto rasteiro conseguiu alcançar seu calcanhar. Nina gritou mais uma vez e pegando a vara do chão acertou um golpe certeiro na cabeça da serpente, foi o suficiente. Ao perceber que Tadeu tinha um ferimento no pé, sua mãe perdeu os sentidos, caiu e ficou desfalecida. Ao som do segundo grito de Nina, Dona Dinda e outros moradores correram até o jardim da casa. Enquanto uns foram tentar acudir a mãe do menino Dinda se dirigiu até ele e indagou sobre o que sucedeu.: _Me diz meu filho, o que houve? Mão de ferro, sentindo dor respondeu: _Aquela cobra Dinda, me pegou. Ela então avistou a serpente com a cabeça desfigurada. Olhando o calcanhar de Tadeu reparou o sangramento. Neste momento percebeu que sua mãe desmaiou ao ver o ocorrido. Com uma toalha embebida em alcool os vizinhos reanimaram Nina que logo arregalou os olhos e reclamou pelo filho: _Onde está meu filho, meu filho? Raimundo, seu vizinho, respondeu: _Calma, calma Nina, Dona Dinda o levou pra casa, vai lhe oferecer um remédio com suas ervas para previnir qualquer mal pela picada. Nina se acalmou, pois as plantas medicinais que a Dinda oferecia já eram de conhecimento. Seus efeitos positivos nunca deixaram dúvida. Após dois dias de uso e repouso o menino já estava inteiro. Certo que Dona Dinda reconheceu o menor risco para a vida de mão de ferro. A cobra não era, na verdade, venenosa, mas ainda assim afetou a integridade do menino. Este acontecimento, entre tantos outros, fizeram de Dona Dinda uma unanimidade, querida e respeitada por toda colônia. E foi justamente Tadeu, o mão de ferro, um dos primeiros a chegar no cais para esvaziar sua farta carga de peixes. Sua especialidade era a captura de robalos, um das melhores espécies daquela região. Ele parecia adivinhar a localização exata para jogar sua tarrafa e encontrar o cardume generoso de robalos. Outra aptidão afinada de Tadeu era a precisão e o manejo com o caranguejo, por isso o apelido de mão de ferro. Naquele extenso manguezal recuperado, os crustáceos reencontraram seu berçário natural. Outras espécies também recuperaram seu habitat, como a capivara, o jacaré, o cachorro do mato, entre outras, de existência duvidosa, pois apenas alguns pescadores assumiam ter avistado tais "bichos" naquelas tantas artérias fluviais que formavam aquela imensa área de conservação ambiental. Aliás, foi a partir de sua criação que a flora e a fauna local pode enfim se revigorar. Bia, sem conter sua emoção, entrou no barco já ancorado e abraçou seu amado longamente. Parecia uma verdadeira solenidade. Ela bem sabia o que representava aquele retorno são e salvo do seu grande amor. Quando Salomão foi tragado por aquela tempestade uma certeza até então impensável chegou em toda colônia, ninguém, ninguém mesmo poderia estar isento a uma tragédia depois daquele acontecimento que chocou a todos. Se o mais experiente entre todos não escapou da tormenta quem então poderia. O abraço de Bia em Bira, significava mais que mil beijos, o calor transmitido entre aqueles corpos chegava até a alma. Era o conforto que ele tanto esperava após a perda de seu pai, Salomão. Todo retorno Bia fazia questão de estar sempre ali, a postos, e recepcionar com tanto carinho seu amado. Bira, é claro, mais uma vez se emocionou com a recepção e aquele abraço o confortava sobremaneira. Mas no fundo um incômodo desta vez chegava junto naquele retorno. Além da falta de seu pai, nesta pescaria aconteceu algo que deixou Bira bem incomodado. Jeremias, o substituto de Salomão, estava no fim da procissão. Mas ainda estava fora do alcance dos olhos de Dona Dinda, que abençoava um a um que passava a sua frente. Jeremias trazia consigo as mesmas inquietações que desestabilizaram Bira. E certamente todos na colônia de pescadores também  ficarão. Brandão, atento pelo desembarque do Barbudo, já ficava inquieto. Numa das mãos, um copo com pinga até a borda, na outra um pedaço de filé de sardinha e debaixo do suvaco apertado ao corpo, o caderno todo sujo e rabiscado com suas anotações. Além do Barbudo, outros pescadores também constavam entre seus devedores. Por isso sua inquietação. Aquela já era a quinta dose de pinga que bebia. A procissão ainda não chegou ao fim...

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Procissão

PROCISSÃO O rio naquele fim de tarde de primavera parecia estar em festa com o deslizar suave das embarcações anunciando a volta de mais uma entre tantas viagens em busca do pão de cada dia para aqueles corajosos pescadores.  Pelo adiantado da hora e sob a angústia natural da espera, já aguardavam junto as margens do Maruí alguns amigos, parentes, curiosos, cobradores e comerciantes, todos saudando a passagem da procissão fluvial. Cada qual com sua expectativa. Era um retorno todo especial para um entre aqueles corajosos amantes do rio e do mar. Por isso a ansiosa recepção. Das margens se ouvia gritos de boas vindas, brincadeiras provocativas e um convite recorrente: _Chega logo pra cá mano, já vou pedir mais uma dose pra “bebemorar”. Assim gritou Orlando, o irmão de mão de ferro, apelido de Tadeu, por sua coragem, precisão e disposição na captura do caranguejo. Mão de ferro só não sabia, ainda, a surpresa que o aguardava. O convite não representava a corriqueira recepção de outras viagens, este era especial. Da outra margem, um comerciante da principal peixaria do local levanta sua voz: _Diz pra mim “cumpadi” barbudo, tá cheio aí o cesto? Barbudo é como chamavam João, desde sua promessa em manter a farta barba. Brandão, o peixeiro, queria mesmo era garantir o pagamento do empréstimo que fizera ao pescador antes de sua partida. E Barbudo, cabisbaixo, olhou fixo para o interior do barco e num esforço expressivo ergueu o polegar positivamente para seu credor. Um calor de arrepiar tomou o seu corpo, uma lista de compromissos surgia em seus pensamentos, entre elas a dívida com Brandão. A procissão rumo ao cais avança e um olhar atencioso se destaca entre todos. Os olhos de Bia procuravam cuidadosamente encontrar seu grande amor, mas em vão, ainda não o avistava na grande procissão. Sempre assim era a agonia de Bia pela volta dos pescadores, especialmente de seu namorado, Bira. Desde a grande tempestade que engoliu Saldanha, um dos mais experientes do grupo, mas que não resistiu aquela tormenta. Bia não tirava isso da cabeça, por isso o sofrimento. Junto a imensa tamarineira se ouviu um grande louvor que soou do início até quase a última embarcação. Foi Dona Dinda que soltou a voz: _Glória a Deus! Graças a Deus Pai estão de volta nossos meninos. E enviou, já dali mesmo, sua Bênção para todos e de forma toda especial para seu afilhado, Dinho. E todos que passavam a reverenciavam com a gratidão de afilhados. Era assim que Dona Dinda tratava todos os pescadores. Bia, enfim, abre um sorriso luminoso, seus olhos já conseguiam encontrar adiante seu querido, Bira. Assim era chamado Ubirajara. Mas este, tinha outros pensamentos e não havia avistado Bia. Orlando, antes que pedisse a bebida na venda foi repreendido por mão de ferro. _Mano, hoje não vai dar, tenho treino amanhã bem cedo, antes do nosso jogo, solteiro x casado, e não quero perder dessa vez. Todo fim de ano esse jogo era aguardado com grande entusiamo. Era a partida que colocava a prova os solteiros contra os casados, ou cansados, como eram chamados pelos mais jovens. Era uma sensação. E no jogo passado os solteiros perderam. Por isso a cautela do mão de ferro. Queria estar inteiro para a partida e devolver a derrota para os casados. Mas Tadeu ainda tinha uma surpresa e que poderia mudar seus planos. Barbudo que ainda não conseguia tirar a lista de credores da cabeça foi se aproximando do cais e uma certeza o tomou por inteiro, que não poderia deixar de contribuir com sua congregação, mesmo que pra isso sacrificasse algum compromissos. Nesta intenção fez uma estimativa do que lhe renderia a pescaria frente ao que precisava pagar. Dinho, que tinha por sua madrinha verdadeira adoração, aliviou seu coração ao vê-la tão bem. Antes de sair pra pescaria percebeu que não estava bem de saúde. Estava na verdade com um aperto no peito ao saber que mais uma pescaria se aproximava. E que seu Dinho também iria. Ele ficou aliviado, esta noite teria samba na quadra e como sua madrinha estava bem ele iria, com certeza, pra brincar com seu repique e sacudir a poeira da quadra da escola de samba. Depois do gosto por pescar, Dinho guardava outros dois grandes prazeres, trazer alegria pra todos da comunidade do samba com sua percussão e acompanhar, sempre que possível, a missa na Matriz. E naquele domingo teria, e Dinho, se programou para participar. Bira, que já se aproximava do desembarque, retomou sua atenção para o presente e não conseguia tirar os olhos do seu amor, Bia. Não importava o tempo, uma noite, três dias, uma semana. Qualquer segundo longe um do outro representava uma eternidade. Pela margem ela caminhava em direção ao cais e quanto mais se aproximava ambos se olhavam fixamente e só pensavam em se abraçar e se abraçar. Era tanta saudade. O Maruí estava repleto de taboas, por isso a demora no desembarque. Mas a procissão ainda não terminou...

terça-feira, 16 de maio de 2017

O diário continua...

Tempo para distribuir poesia, recheadas de utopia. Para acreditar que o momento de dor e incerteza não pode sufocar nossa vontade de ter um novo e outro dia de alegria. Vamos entregar nossa poesia e receber a esperança de experimentar nossa utopia.Tempo para abraçar, para sorrir, para distribuir flores. Tempo para gritar que a vida é muito mais que toda esta nuvem cinzenta que nos inquieta, entristece e amedronta. Tempo para provar o improvável, tempo para provar o sabor de todas as flores além de todas as dores.