sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Procissão

PROCISSÃO O rio naquele fim de tarde de primavera parecia estar em festa com o deslizar suave das embarcações anunciando a volta de mais uma entre tantas viagens em busca do pão de cada dia para aqueles corajosos pescadores.  Pelo adiantado da hora e sob a angústia natural da espera, já aguardavam junto as margens do Maruí alguns amigos, parentes, curiosos, cobradores e comerciantes, todos saudando a passagem da procissão fluvial. Cada qual com sua expectativa. Era um retorno todo especial para um entre aqueles corajosos amantes do rio e do mar. Por isso a ansiosa recepção. Das margens se ouvia gritos de boas vindas, brincadeiras provocativas e um convite recorrente: _Chega logo pra cá mano, já vou pedir mais uma dose pra “bebemorar”. Assim gritou Orlando, o irmão de mão de ferro, apelido de Tadeu, por sua coragem, precisão e disposição na captura do caranguejo. Mão de ferro só não sabia, ainda, a surpresa que o aguardava. O convite não representava a corriqueira recepção de outras viagens, este era especial. Da outra margem, um comerciante da principal peixaria do local levanta sua voz: _Diz pra mim “cumpadi” barbudo, tá cheio aí o cesto? Barbudo é como chamavam João, desde sua promessa em manter a farta barba. Brandão, o peixeiro, queria mesmo era garantir o pagamento do empréstimo que fizera ao pescador antes de sua partida. E Barbudo, cabisbaixo, olhou fixo para o interior do barco e num esforço expressivo ergueu o polegar positivamente para seu credor. Um calor de arrepiar tomou o seu corpo, uma lista de compromissos surgia em seus pensamentos, entre elas a dívida com Brandão. A procissão rumo ao cais avança e um olhar atencioso se destaca entre todos. Os olhos de Bia procuravam cuidadosamente encontrar seu grande amor, mas em vão, ainda não o avistava na grande procissão. Sempre assim era a agonia de Bia pela volta dos pescadores, especialmente de seu namorado, Bira. Desde a grande tempestade que engoliu Saldanha, um dos mais experientes do grupo, mas que não resistiu aquela tormenta. Bia não tirava isso da cabeça, por isso o sofrimento. Junto a imensa tamarineira se ouviu um grande louvor que soou do início até quase a última embarcação. Foi Dona Dinda que soltou a voz: _Glória a Deus! Graças a Deus Pai estão de volta nossos meninos. E enviou, já dali mesmo, sua Bênção para todos e de forma toda especial para seu afilhado, Dinho. E todos que passavam a reverenciavam com a gratidão de afilhados. Era assim que Dona Dinda tratava todos os pescadores. Bia, enfim, abre um sorriso luminoso, seus olhos já conseguiam encontrar adiante seu querido, Bira. Assim era chamado Ubirajara. Mas este, tinha outros pensamentos e não havia avistado Bia. Orlando, antes que pedisse a bebida na venda foi repreendido por mão de ferro. _Mano, hoje não vai dar, tenho treino amanhã bem cedo, antes do nosso jogo, solteiro x casado, e não quero perder dessa vez. Todo fim de ano esse jogo era aguardado com grande entusiamo. Era a partida que colocava a prova os solteiros contra os casados, ou cansados, como eram chamados pelos mais jovens. Era uma sensação. E no jogo passado os solteiros perderam. Por isso a cautela do mão de ferro. Queria estar inteiro para a partida e devolver a derrota para os casados. Mas Tadeu ainda tinha uma surpresa e que poderia mudar seus planos. Barbudo que ainda não conseguia tirar a lista de credores da cabeça foi se aproximando do cais e uma certeza o tomou por inteiro, que não poderia deixar de contribuir com sua congregação, mesmo que pra isso sacrificasse algum compromissos. Nesta intenção fez uma estimativa do que lhe renderia a pescaria frente ao que precisava pagar. Dinho, que tinha por sua madrinha verdadeira adoração, aliviou seu coração ao vê-la tão bem. Antes de sair pra pescaria percebeu que não estava bem de saúde. Estava na verdade com um aperto no peito ao saber que mais uma pescaria se aproximava. E que seu Dinho também iria. Ele ficou aliviado, esta noite teria samba na quadra e como sua madrinha estava bem ele iria, com certeza, pra brincar com seu repique e sacudir a poeira da quadra da escola de samba. Depois do gosto por pescar, Dinho guardava outros dois grandes prazeres, trazer alegria pra todos da comunidade do samba com sua percussão e acompanhar, sempre que possível, a missa na Matriz. E naquele domingo teria, e Dinho, se programou para participar. Bira, que já se aproximava do desembarque, retomou sua atenção para o presente e não conseguia tirar os olhos do seu amor, Bia. Não importava o tempo, uma noite, três dias, uma semana. Qualquer segundo longe um do outro representava uma eternidade. Pela margem ela caminhava em direção ao cais e quanto mais se aproximava ambos se olhavam fixamente e só pensavam em se abraçar e se abraçar. Era tanta saudade. O Maruí estava repleto de taboas, por isso a demora no desembarque. Mas a procissão ainda não terminou...

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